sexta-feira, setembro 07, 2007

2004 Caminho de Santiago - 2a.parte

*** Caminho de Santiago 2004 - 2a. parte ***

Dia 17 – 02/10/04 – Sábado – EL BURGO RANERO
A ideia seria dormir mais que o normal na noite passada, mas não aconteceu assim.
Estava muito calor e custou-me a adormecer. O albergue em Sahagún é numa antiga igreja. Ao nível do rés-do-chão há um salão para exposições e recepção e a meia altura há uma plataforma de madeira com o albergue, propriamente dito. Como o chão é de soalho até parece que algumas pessoas batem os pés com força para fazer barulho. Também não faltam os ressonadores e até uma discussão que acorda todo o mundo. Para completar só mesmo um trambulhão do Bartolomé que caiu do beliche de cima. Como durante a caminhada se bebe muita água, às vezes, de noite é preciso ir ao quarto de banho urinar. Ao descer escorregou-lhe uma mão e pumba. Naquele soalho foi cá um estrondo. Felizmente não teve nada.
De manhã somos quase os últimos a sair. Vamos fazer uma etapa mais curta, como tínhamos pensado. A zona que atravessamos é muito seca e monótona enquanto acompanhamos a estrada para León. Já perto do final passamos por uma pequena lagoa onde nadam alguns patos. Apetece-me fazer o mesmo. Tem estado um calor!
Na aldeia há muitas casas de adobe. Até o albergue, apesar de parecer recente. A única coisa de interesse é uma pequena lagoa à saída. Foi engraçado ver aquelas rãs todas a saltar para a água quando me aproximei.
Ao cair da noite enquanto estou a conversar com o Bartolomé sobre o dia anterior e em também fazermos poucos quilómetros no dia seguinte conheço o Ramón e a Teresa, um casal de Bilbao, muito simpáticos e que começaram a caminhada em Sahagún. A Teresa ouve-nos falar e pergunta ao Bartolomé se tinha sido ele que caiu no albergue pois estava mesmo ao lado e quer saber como está. O Ramón previne-nos de que é “roncador”.
Hoje, mais uma vez, as duas moças americanas não fizeram a etapa juntas, uma veio a pé e a outra apanhou o autocarro a meio do caminho.
À noite janto no albergue com a Idair, uma brasileira que anda quase sempre com a Magui, que também janta connosco e com o Jesse, um americano de vinte e poucos anos, que concheci ontem. O jantar para não variar é macarrão e salada e para acompanhar não falta um bom vinho tinto.



Dia 18 - 03/10/04 – Domingo – MANSILLA DE LAS MULAS
De manhã saio com as sandálias calçadas para ver se as bolhas começam a secar. Ao fim de pouco tempo começo a pensar que não terá sido boa ideia pois há pedrinhas e areias que se vão metendo nas sandálias e magoam os pés. Depois apanho-lhe o jeito e já não acontece tantas vezes. Apenas há um contra nesta situação: é que as botas vão penduradas na mochila que fica mais pesada e além disso sempre a balouçar e a bater na cabaça que o Pablito me deu e ainda levo ao dependuro. Num ponto onde paramos para comer e descansar um pouco revejo a posição das botas e puxo-as o máximo de encontro à mochila e parece que resulta. Quando chego ao final sinto ospés a arder por baixo mas penso que será só da adaptação às sandálias que são rugosas. Acho que não passa disso.





Dia 19 – 04/10/04 – Segunda-feira – LEÓN
Saio novamente de sandálias. Como está calor até ajuda a refrescar os pés. A meio do caminho o Bartolomé e eu apanhamos a Teresa e o Ramón que tinham saído mais cedo. A Teresa anda bem mas o Ramón tem um certo peso na barriga que lhe dificulta a marcha. Quando estamos a chegar a León eles dizem-nos que vão ficar num “hostal”, que é uma espécie de pensão ou pequeno hotel, e nós continuamos para um albergue que fica mais no centro da cidade. O albergue é no convento das Madres Benedictinas e é o primeiro nestes dias todos, que encontro, em que há separação de camaratas para homens e para mulheres. Encontro dois ciclistas de Lisboa.
Vou procurar onde descarregar as fotos dos cartões de memória, pois já estão cheios outra vez. O rapaz que faz a operação diz-me que um dos cartões está avariado e não consegue descarregar. Só se tivesse o cabo de ligação para ligar directamente da máquina ao computador, mas eu não levei esse cabo nem nunca me passou pela cabeça levá-lo. Ainda fui ao albergue falar com dois peregrinos que conhecia para verse tinham esse cabo, mas nada, nenhum tinha. Fica um cartão por descarregar e para outra vez já sei...
Entretanto o Bartolomé tinha ido à estação de comboios e também à central dos autocarros saber horários e ligações, pois daqui a dias ele terá que se ir embora antes de chegarmos a Santiago.
Ando um pouco pela cidade que está em festa. São as festas de San Froilan. Visito uma igreja muito bonita e vagueio um pouco por uma feira medieval que é enorme e que tem de tudo. Aprecio aqueles bazares de artigos estranhos e todos os artistas e saltimbancos.
Ao passar numa gelataria, e como está muito calor, compro um daqueles gelados de frutas e vou pela rua fora a saborear. De repente sinto uma mão num ombro e quase dou um salto. É o Bartolomé que já tinha vindo e se tinha escondido para me assustar.
Vamos juntos visitar a catedral. Lá dentro vemos que é espectacular com todos aqueles vitrais, imagens, quadros, sei lá... Muito bonita. Quando já estamos para sair aparecem a Teresa e o Ramón. Saímos juntos e vamos todos para a feira medieval.
Paramos na tenda da Galiza para comer polvo e beber uns copos de vinho alvarinho. Numa tenda há várias aves de rapina.
A noite vai caindo e quando digo que quero ir jantar ninguém me liga e continuamos.
Passado um pedaço e já perto das nove horas quando digo que vou jantar queiram eles ir ou não é que parece que sentem a fome. Com muita gente na rua e os restaurantes e bares quase cheios não é fácil arranjar um lugar mas sempre conseguimos. É preciso comer um pouco à pressa pois o albergue fecha às dez horas.
O Ramón e a Teresa, como ficam no hostal, ainda vão outra vez para a feira mas nós temos de ir para o albergue.
O problema é chegar ao albergue. Tínhamos saído ao início da tarde e depois de tantas voltas e de noite já não conseguíamos encontrar o caminho. Íamos perguntando às pessoas e lá chegamos à porta. Está fechada, mas abre. Já são quase dez e meia. Lá dentro dizemos que nos tínhamos perdido mas ninguém liga. Não interessa. Vamos dormir.
Hoje foram muitas horas a caminhar e ainda o deambular pela cidade. Muitos quilómetros!







Dia 20 – 05/10/07 – Terça-feira – SAN MARTIN DEL CAMINO
A saída de León é a acompanhar a estrada e ainda nos arredores começamos a passar no meio de feirantes que estão a preparar uma feira. É mesmo em cima dos passeios e às vezes até precisamos descer ao asfalto. Mais à frente temos de andar às voltas e a subir e descer para passar uma série de estradas e auto-estradas. Há um percurso próprio mas torna-se cansativo.
Ao final da manhã, quando estou a preparar-me para sair do café onde tinha estado parado a recuperar energias, aparece um grupo de italianos que tinham começado a fazer o caminho em León. Uma das moças, chamada Silvana, já vem a dizer que não pode continuar e que a mochila pesa muito. Mas logo começamos a dizer que não pode desanimar e que ao fim de dois ou três dias já estará bem. Ela diz que pode ser mas vai ter de comprar outra mochila pois aquela magoa-lhe os ombros. Comprou a mochila na véspera de sair e não a tinha experimentado.
Ao chegar a San Martin vemos que é uma povoação pequena mas tem um albergue com bastantes lugares.
Ao final da tarde quando regresso de uma mercearia onde tinha ido comprar fruta encontro o Bartolomé a conversar com um senhor espanhol e junto-me a eles. Fico espantado com o que vou ouvindo. Este senhor tem 78 anos e é a décima sexta vez que faz o caminho de Santiago, incluindo duas vezes que fez a Via de La Plata, que começa em Sevilha, e outras duas em que iniciou a caminhada em Constanz, na Alemanha, com um amigo alemão que conheceu uns anos antes.
Também chegou a ir até Finisterra algumas vezes, pois é muito bonito, e disse que valia a pena continuar depois de chegar a Santiago. Saindo de Sevilha são quarenta dias e da Alemanha demora três meses a completar o caminho. Na Alemanha e na França não há uma rede de albergues como em Espanha. Há alguns alojamentos semelhantes mas não são a mesma coisa. Diz que começou a fazer o caminho aos 60 anos e que um amigo, que ainda só fez seis vezes o caminho, agora tem vindo com ele. Só que este amigo já tem 82 anos e os dois juntos andam que se fartam. Quando estávamos a uns quatro quilómetros do final da jornada, ao atravessar uma aldeia, os dois passaram por nós e eu disse ao Bartolomé que não podíamos ser ultrapassados pelos velhotes. Tive de puxar bem para me conseguir aproximar deles. O Bartolomé foi ficando para trás pois anda sempre com bolhas nos pés e não conseguiu manter o ritmo.
Ao final da tarde depois do jantar começo a pensar que da maneira que o vento sopra não é bom sinal. O John também me diz que se calhar vamos ter chuva. Estamos a chegar à Galiza que é a região de Espanha onde chove mais. Não há-de ser nada.





Dia 21 – 06/10/04 – Quarta-feira – ASTORGA
A chuva aparece para confirmar o meu receio. Ainda durante a noite comecei a ouvi-la cair, pois uma mulher a meu lado ressonava de tal maneira que não dormi em condições. Já havia alguns dias que não acordava por causa dos ressonadores, mas desta vez tive mesmo de fazer uns tampões com papel higiénico para meter nos ouvidos. Algumas pessoas compram tampões antes de iniciar a caminhada pois já sabem para o que vêm. Eu também sabia mas achei que devia aguentar e até à data só tinha tido uma noite mal dormida em Logroño, por causa dos roncadores.
Hoje pela primeira vez tenho de sair com o impermeável vestido. Até agora saía sempre de manga curta pois aguentava bem a frescura da manhã e ao fim de alguns minutos a andar o frio desaparecia. Não é uma chuva muito forte mas é o suficiente para transtornar a caminhada. A meio da manhã a chuva pára e o sol começa a aparecer ficando uma temperatura agradável.
Ao chegar a Astorga já se vê ao longe a catedral. Quando a vou visitar vejo que é espectacular. A poucas dezenas de metros fica o Palácio Episcopal que foi desenhado por Antonio Gaudí, um célebre arquitecto espanhol.
Durante a tarde encontramos a italiana que já comprou uma mochila nova e vai mandar a outra para casa pelo correio. Diz que anda a sentir dores numa perna e não sabe se vai poder continuar. Na praça da câmara, quando estamos numa esplanada a tomar um refresco, a Teresa é atingida num tornozelo por um skate de uns miúdos que andam a brincar ali perto. É uma pancada que a põe pensar se não haverá problemas em continuar no dia seguinte pois formou-se uma pisadura bastante negra. Como ela é enfermeira e traz um saco com alguns medicamentos vamos até ao albergue para chegar uma pomada para aliviar.







Dia 22 – 07/10/04 – Quinta-feira – RABANAL DEL CAMINO
Saindo de Astorga começa-se a ver muito mais verdura e montanhas. A meio da manhã começa a chuviscar e é preciso colocar o impermeável. Passado pouco tempo dá para tirar, mas andando mais um pouco torna a chover. Paro num café para repor energias enquanto aguardo que a chuva passe.
Ao chegar a Rabanal temos de esperar pela abertura do albergue. Entretanto há pessoas que vão continuando o caminho para ficar no próximo albergue em Foncebadón, pois no dia seguinte será a subida do monte Irago até à Cruz de Ferro. Aqui é o ponto mais alto do caminho e esse albergue fica já a meio da subida e assim custará menos a fazer.
Eu fico em Rabanal pois penso que de manhã e depois de uma boa noite de sono a subida não deve ser muito difícil. A meio da tarde já há a informação de que o albergue de Foncebadón está cheio, pois tem poucos lugares, e ninguém mais deve subir. Só há outro albergue a dez quilómetros e com a noite a aproximar-se e o vento frio que se levantou é perigoso continuar. Ao menos deixou de chover.
Rabanal é uma aldeia que tem um pequeno mosteiro cujos monges vão todas as tardes fazer a celebração das vésperas na igreja local. Às sete lá vou assistir mas acho que foi uma reza um pouco monótona. São três monges a cantar as ladainhas em latim quase sempre num tom monocórdico que não satisfaz a minha expectativa. O mais interessante é a parte final com peregrinos de quase todas as nacionalidades presentes a irem ao altar para ler uma oração na sua língua materna. Disse de quase todas as nacionalidades pois não me disseram para ir e eu era o único português e nem brasileiros havia. Mas não me preocupei. O Bartolomé foi ler para os espanhóis.
No albergue, no refeitório que serve de sala de estar, depois de ter passado os olhos por um jornal começo a escrever os meus pequenos apontamentos diários quando entra uma moça que pega numa guitarra que está junto à lareira e começa a tocar e a cantarolar. Ainda fica alguns minutos, mas é hora de ir dormir e tem de parar. Amanhã é novo dia e temos uma subida pela frente.





Dia 23 – 08/10/04 – Sexta-feira – MOLINASECA
Saímos ainda escuro pela manhã. O céu está encoberto mas parece que não deve chover. Ao passar em Foncebadón vemos que é uma aldeia em ruínas apenas com o albergue e outras duas casas em condições de habitabilidade. Aqui temos que retemperar as forças para o resto da subida. Quando chegamos à Cruz de Ferro vemos que a subida afinal não é tão violenta como diziam. Mesmo o Ramón não acha, ele que tem uma certa dificuldade a subir. Aqui, na base da cruz, deixo uma pedra que trouxe de casa. Tinha lido que é tradição deixar um objecto ou pedra que se tenha trazido de casa. Assim, antes de sair de casa meti na mochila uma pequena pedra onde escrevi o local e a data da saída. Como é um ponto carismático do caminho, tiramos os quatro, uma foto de grupo pois faltam poucos dias para o grupo se desfazer.
Um pouco abaixo da Cruz de Ferro há uma aldeia, Manjarin, com uma casa habitável cujo dono dá dormida a algum peregrino que se tenha atrasado no caminho. Tem menos de vinte lugares mas sem condições nenhumas. Só mesmo para dormir. Junto da entrada há uma série de placas com as distâncias até algumas cidades e lugares do mundo.
Se a subida não me parece muito difícil já a descida é mais complicada. São alguns quilómetros por caminhos cheios de pedra solta que podem dar para torcer um pé. Quando o Bartolomé e eu chegamos a El Acebo, a meio da descida, a Teresa e o Ramón ainda não se vêem na descida por isso encostamos para comer qualquer coisa. No fim ainda esperamos um pouco mas eles não chegam por isso vamos continuando para não arrefecer muito, pois estava um ventinho fresco.
Já na entrada de Molinaseca começa a chuviscar e aceleramos o passo para chegar ao albergue antes que chova a sério. Conseguimos. Ainda pensamos continuar até Ponferrada mas a chuva que estava a engrossar desanima-nos.
Entretanto alivia um pouco e no fim do almoço vamos comprar alguns mantimentos já debaixo de uma chuva certinha mas sem ser pesada. Encontramos a Teresa e o Ramón que tinham parado para almoçar. Também vão ficar no albergue onde estamos.
Aproveitamos para trocar endereços pois a partir de amanhã vamo-nos separar. A Teresa e o Ramón não vão fazer tantos quilómetros como eu e o Bartolomé e ficam em Cacabelos a meio da etapa.
Ao final da tarde a chuva cai mais forte e toda a gente fica a pensar como será no dia seguinte. Parece que a época das chuvas já chegou. Mas não se pode parar.







Dia 24 – 09/10/04 – Sábado – VILLA FRANCA DEL BIERZO
Ontem de tarde esteve a chover e a roupa não secou bem, nem durante a noite, por isso levo as meias penduradas na mochila. Quando já estamos a finalizar o pequeno almoço em Ponferrada chegam a Teresa e o Ramón. Despedimo-nos pois eles vão ficar para o pequeno-almoço e nós vamos continuar de seguida. Ainda temos de vestir o impermeável pois começa a cair uma chuva fraca mas como está o céu muito carregado mais vale prevenir. Enquanto atravessamos a cidade que mereceria uma visita mais alargada a chuva não pára e só à saída desaparece o negrume e surge o sol.
Ao passar em Cacabelos, ao início da tarde e como a barriga já ia a dar horas, paramos numa “pulperia” e comemos uma bela dose polvo. Aproveito para guardar as meias que já estão secas. À saída da cidade encontramos a italiana à porta do albergue à espera dos companheiros pois tinha vindo de autocarro. Tinha uma tendinite e não podia caminhar. Desejamos-lhe sorte e continuamos.
O percurso passa a ser um sobe e desce pelo meio de vinhas. Entretanto o vento torna-se mais forte e ameaça trazer a chuva. Já muito próximo da cidade começa a chover e é preciso acelerar um pouco o passo para evitar vestir o impermeável. Depois de chegarmos a chuva fica mais forte e ainda se mantém durante algum tempo. É um problema conseguir secar a roupa. Como há muita humidade resolvemos lavar a roupa à máquina e secá-la na secadora, mas esta não funciona muito bem e a roupa fica um pouco húmida. Valemo-nos da corda que levo e estendemo-la nas grades das escadas interiores e assim a roupa já seca durante a noite.







Dia 25 – 10/10/04 – Domingo – O CEBREIRO
Pela primeira vez na caminhada perco-me e não dou com a saída da cidade. Na véspera tinha feito um reconhecimento, como de costume, mas talvez por confiança não fui mesmo até a saída. Também poderia ser por causa da chuva. Chove bem e com o dia ainda a nascer vê-se menos bem. A meio da manhã, numa das paragens para reabastecimento, a chuva abranda e pára. Já começava a sentir o corpo húmido com a chuva e a transpiração.
O sol vai aquecendo um pouco mas o ar está frio. Paro mais uma vez numa pequena aldeia onde estão ou vão chegando velhos conhecidos. Toda a gente retempera forças, uns com vinho, outros com cerveja e alguns até com café com leite, para atacar a subida ao Cebreiro. Esta subida, segundo tenho ouvido e lido, é das mais complicadas e difíceis do caminho, principalmente quando chove pois o chão fica lamacento e escorregadio. No café vemos que há um serviço de transporte de mochilas até ao albergue mas ninguém está interessado.
Entramos numa zona mais montanhosa e a paisagem começa a mudar. A Galiza aproxima-se e a verdura dos campos e florestas é espectacular. Parece uma manta de retalhos com os verdes escuro e claro. Como o Bartolomé sobe mais rápido do que eu a certa altura ele adianta-se e nunca mais o vejo. Não há problema, cada um vai no seu ritmo.
O ar está um pouco fresco mas até que nem é mau porque a subida é mesmo a subir e assim não sinto calor.
O caminho é bonito e passa em zonas de muitos castanheiros. Tem muita pedra e lama e de vez em quando lá vai uma escorregadela. Numa aldeia pensei que poderia comer qualquer coisa mas não encontro nada aberto nem ninguém.
Tenho de me socorrer de frutos secos e barras energéticas que carrego. Começa a arrefecer e caem alguns aguaceiros espaçados por um sol que tenta ser quente.
Canso-me de pôr e tirar o casaco do impermeável e às tantas prendo-o ao pescoço por cima da mochila, sempre vai fazendo de capa.
Pouco antes de passar o marco que assinala a fronteira entre León e a Galiza, penso que ainda a cerca de dois ou três quilómetros do final, encontro um peregrino argentino que vai esgotado. Não consegue ir direito, vai apoiado no seu cajado e mal consegue falar. Pede-me para não o deixar só pois tem medo que lhe dê alguma coisa. Eu penso que não posso fazer grande coisa mas pelo menos vou-lhe dando apoio moral.
Chegamos a O Cebreiro sem acontecer nada de mal. A subida é puxada mas com calma faz-se. Quando chego ao albergue o Bartolomé já lá está há muito. Tinha vindo sempre pela estrada de asfalto e não entrou no caminho de terra onde havia as indicações. O que interessa é que estamos cá em cima.
A maior parte dos peregrinos fica na aldeia que é muito pequena, mas é um dos pontos míticos do caminho. Aqui, dizem, é onde se encontram e cruzam as mais fortes forças espirituais e místicas em todo o percurso. No fim de jantar junto-me, no albergue, a um grupo onde se fala disso. É um grupo heterogéneo com brasileiros, a Magui, a Idair e o André, uma canadiana, a Maud, que a certa altura nos faz uma sopa para aquecer, o Bartolomé, um japonês que sabia meia dúzia de palavras de castelhano e um espanhol que era professor de História e de quem não sei o nome. Este professor, já fazia pela terceira vez o caminho, contou muitas histórias relacionadas com as peregrinações a Santiago de Compostela.
Já os pagãos, ainda antes da era cristã, fariam peregrinações até O Cebreiro e Finisterra. Com o correr dos tempos a Igreja arranjou forma de dar um outro rumo às peregrinações.






Dia 26 – 11/10/04 – Segunda-feira – TRIACASTELA
À saída pela manhã, já com o dia a nascer, ameaça chuva e a grande maioria das pessoas segue pela estrada mas eu prefiro ir com o Bartolomé pelo caminho de terra que atravessa um bosque muito bonito. Ao fim de alguns quilómetros e já a descer para a estrada começa a chover bem. A primeira paragem que fazemos é no Alto do Poio para tomar um café quente. Está a chover e faz frio e nem a subida me faz aquecer. A subida não é muito longa mas é bastante íngreme e a meio encontramos um ciclista que deve estar a fazer um esforço enorme para arrastar a bicicleta pela encosta acima com todos aqueles sacos. A chuva que não pára e o nevoeiro bastante cerrado apenas deixam entrever a paisagem de vez em quando. É uma zona bonita mas não se pode apreciar. Só queremos chegar ao fim para aquecer um pouco.
Pode ser dos muitos dias a caminhar mas só agora com a chuva começo a pensar que já estou farto de andar. A chuva desmoraliza um pouco. A roupa não seca em condições. Mas como já estou perto do final tenho de aguentar.
Perto da cidade a chuva pára e o sol de vez em quando aparece mas não aquece.
Como estamos a passar em zonas de castanheiros eu e o Bartolmé vamos apanhando algumas castanhas para comer à noite no albergue. A meio da tarde começa outra vez a chover e não dá para sair. Depois do jantar comemos algumas castanhas cozidas e bebemos um licor de pêssego muito bom.




Dia 27 – 12/10/04 – Terça-feira – SARRIA
Mais uma vez, à saída, ameaça chover mas não chove. O céu está muito carregado e acho melhor levar o impermeável vestido. Começa logo a subida para San Xil e ao fim de uns minutos tenho de parar para tirar o impermeável. Já vou a transpirar com calor a mais. Mas já depois do final da subida começa a chover e lá tenho que vestir o impermeável outra vez.
Ao passar em Calvor, e como só faltam uns cinco quilómetros para chegar, o Bartolomé e eu resolvemos parar um pouco em Calvor para beber uma sidra e comer qualquer coisa. No café está um grupo de dez cavaleiros peregrinos, alguns deles mexicanos, que nos oferecem presunto, salpicão e vinho. Não vemos como recusar, até porque não podemos fazer uma desfeita à boa vontade deles. Vem mesmo a calhar. Um café e continuamos. Eles demoram a aparelhar os cavalos e já passam por nós mais à frente com alguns a galope e outros mais atrás a pedir desculpa pelos primeiros. O caminho é a par da estrada e temos de fugir para não ser atropelados. Além destes cavaleiros, que já tinha visto no dia anterior, reparo que há mais alguns peregrinos a caminhar e que até hoje ainda não tinha visto.
Ao entrar em Sarria encontramos a Magui e a Idair que vêm por uma estrada diferente e dizem-nos que tinham vindo por outro caminho para ir visitar um mosteiro que por sinal estava fechado. Vamos juntos até ao albergue.
Quando nos preparamos para almoçar junta-se a nós um rapaz de Málaga, que às vezes encontrava pelo caminho, e vamos os cinco.
Este malagueño, no final, ao vestir o casaco bate num fio amarrado a um candeeiro, para não o deixar balançar no Verão por causa de uma ventoinha, que está por cima de nós e faz cair um ou dois globos.
Sinto uma pancada na cabeça e vejo e ouço vidros a cair, mas não ligo. Não demora nada caem umas gotas de sangue na mesa e eu passo a mão na cabeça. Olho para a mão: !Sangue! e logo na mesa ping! ping!, o sangue a cair. Ao meu lado é um reboliço.
Eu só digo que não me dói nada e que estou bem. O dono do bar leva-me ao posto médico onde me limpam a ferida e põem dois adesivos. Afinal são dois golpes muito pequenos. Nem um ponto levo! Em quatro dias já estarei bom. Não pago nada e apenas me pedem o B.I., não sei como seria em Portugal.
De tarde ainda vou procurar um sítio onde possa descarregar as fotos mas não encontro. Está um pouco de frio e às tantas começa a chover por isso regresso ao albergue.
O Bartolomé faz as despedidas pois amanhã vai apanhar o autocarro para ainda ir a Santiago e seguir logo para Madrid pois tem marcada a viagem de avião para casa no dia 14.



Dia 28 – 13/10/04 – Quarta-feira – PORTOMARIN
De manhã está sol e não chove. Depois do pequeno-almoço o Bartolomé despede-se e lá vai para a rua onde passa o autocarro. Ainda diz que há-de regressar para completa o caminho.
De novo só, arranco para mais uma jornada. Encontro o argentino que me diz estar bem. Andamos algum tempo juntos até que eu paro para comer e ele segue.
Começo a ver mais gente desconhecida a pé e sem mochilas e ponho-me a magicar se irão também para Santiago.
Como tem chuviscado um pouco e os cartões de memória da máquina fotográfica estão cheios começo a ver que não vai dar para tirar muito mais fotografias. Tenho de utilizar a reflex. É mais complicado para utilizá-la. A digital levo-a numa bolsa no cinto e a outra tem de ir abrigada na mochila. De cada vez que quero tirar uma foto preciso de tirar a cobertura, abrir o bolso, tirar a foto, fechar o bolso, cobrir outra vez e pôr a mochila às costas. Lá terá que ser, mas é menos prático e mais cansativo.
Portomarin é uma vila pequena e apenas tem uma loja de fotografia onde não consigo descarregar as fotos para CD. O fotógrafo, um senhor já na casa dos setenta, diz-me que ali ainda não há mercado para as novas tecnologias mas eu digo-lhe que vai ter de se actualizar pois cada dia há mais gente a utilizar máquinas digitais.
A meio da tarde começa a chover e a roupa não seca. Entretanto vão chegando cada vez mais peregrinos e a certo ponto o albergue fica cheio e alguns têm de ficar numa escola ao lado. Dizem-me que haverá perto de duzentos peregrinos a ficar nesta vila, pois a chuva mantém-se e ninguém quer continuar. Ao final da tarde vejo chegar um brasileiro, pelo menos é o que parece pela roupa que usa, com duas pernas artificiais. É impressionante.
À noite quando estou a preparar-me para dormir vejo uma moça a rezar junto a outra que parece estar em meditação e de vez em quando vai passando por entre as camas com incenso a arder.





Dia 29 – 14 /10/04 – Quinta-feira – PALAS DE REY
Manhã cedo o céu está carregado mas não chove. A meio da manhã chuvisca mas pára logo a seguir. A paisagem é bonita, mas há sempre nevoeiro. Os castanheiros, alguns terão centenas de anos, e nogueiras são muitos ao longo do caminho. Nozes quase não se vêem mas castanhas há muitas e até faz pena ver que ninguém as recolhe. Parece que estamos em Portugal. As aldeias também são muito semelhantes às do Minho. Vêem-se algumas explorações agrícolas e é preciso muito cuidado para não escorregar na muita bosta de vaca ao longo dos caminhos e ruas.
A certa altura encontro a Brenda e o John e vou com eles. A Brenda pergunta-me o que são umas plantas que vê em quase todos os quintais e não conhece no Canadá. São couves, penso eu, mas não sei o nome em inglês. Tento explicar que há algumas variedades de couves e que servem para comer na sopa ou cozidas com bacalhau e batatas ou noutros pratos.
Pouco depois de chegar a Palas de Rey começa a chover. No albergue há máquinas de lavar e secar roupa mas é tanta gente que nunca mais arranjo vez. Fica a escorrer e de noite já deve secar. Dentro do dormitório há dois aquecedores mas todos põem lá a roupa e não seca nada..
Como chego um pouco tarde já não tenho onde almoçar, mas arranjo onde comer uma ração de polvo e beber umas sidras. Afinal já estamos na Galiza.
A chuva abranda e procuro um fotógrafo ou sítio para descarregar as fotos, mas não encontro nada. Encontro mas é uma italiana que não vejo há dias e que me pergunta o que tenho na cabeça. Lá lhe conto o meu acidente. Então reparo que tem os olhos negros e pergunto-lhe o que se passou. Ela só levanta o cabelo e mostra-me um grande golpe cosido com bastantes pontos. Tinha caído e rachado a cabeça. Ganhou-me aos pontos! Com ela está a Mónica, a suiça, que me diz que esteve uma noite no hospital com problemas no estômago, mas já está bem. Vão ficar num hostal pois o albergue já está cheio.
Ao final da tarde vou a uma farmácia comprar aspirinas, pois tenho um dente que me andar a doer há alguns dias e não tenho nenhuma. Também só tinha levado meia dúzia delas e tinha dado algumas ao Bartolomé.


Dia 30 – 15/10/04 – Sexta-feira – ARZÚA
O dia começa sem chuva que aparece a meio da manhã, quando paro para comer. Espero um pouco a ver se abranda e entretanto chega o tal brasileiro com as pernas artificiais. É do Rio de Janeiro e chama-se António. Falo com ele alguns minutos e diz-me que começou em França.
Com a chuva e o frio não apetece caminhar. Mas são os últimos dias. É preciso continuar. Vejo pessoas a caminhar sem mochila e ponho-me a pensar que não há direito. Começaram a peregrinação em Sarria e assim já fazem pelo menos os cem quilómetros a pé para ter direito à “compostela”, documento passado em Santiago a quem faz a peregrinação. Quando chego aos albergues não tenho nenhuma prioridade sobre eles apesar de já vir a andar há muitos dias. E eles ainda por cima têm um carro de apoio que lhes leva as mochilas.
Ao passar em Melide encontro, finalmente, onde descarregar as fotos para CD.
Enquanto espero vou a um bar comer e encontro lá a Brenda e o John. Conversamos sobre este mês que fomos mais ou menos vivendo juntos. Como estamos a chegar ao final aproveitamos para trocar endereços e prometo à Brenda que vou comprar sementes de couve e mandar-lhas pelo correio. Ela ri-se ao lembrar-se do dia anterior.
A chuva pára e saímos. Despedimo-nos pois podemos não tornar a encontrar-nos.
Vou buscar os cartões e o CD e continuo. Já posso fazer mais fotografias sem problema.
Afinal a chuva torna a cair quando saio da cidade e não pára. Só a meio da tarde o sol começa a aparecer mas logo desaparece.





Dia 31 – 16/10/04 - Sábado – MONTE DO GOZO
Chuvisca à saída mas dá ideia que vai abrandar e arrisco a sair sem o impermeável. Tenho sorte e o sol abre e aquece como já há dias não o fazia.
Quando vejo peregrinos sem mochila e a andar a custo penso que afinal a minha ideia do dia anterior não tem razão de ser. Se calhar custa-lhes mais a eles fazer um quilómetro do que a mim fazer dez com a mochila pesada. Cada um é que sabe como pode ou quer caminhar.
A meio da manhã encontro a Idair e quando paramos para comer começa outra vez a chover. No café há um mapa com o perfil do percurso que ainda falta até Santiago e pomo-nos a fazer contas de cabeça para ver aonde seria melhor ficar. Se em Arca do Pino, a meia dúzia de quilómetros, ou continuar até Labacolla, dez quilómetros à frente.
Vamos andando e vendo. Ainda fazemos meia hora debaixo de chuva mas depois alivia e pára. Ao chegar a Arca do Pino, como até era cedo, resolvemos continuar e à saída da vila paramos mais uma vez porque era preciso retemperar as forças para os quilómetros seguintes. No café informam-nos de que em Labacolla não há albergues, só hoteis ou hostales. Vamos continuar e depois vê-se. Ao chegar encontramos alguns conhecidos que nos dizem que não vão ficar ali. Entretanto chegam mais pessoas que não param. Nós resolvemos que é de continuar e seguimos em frente. Como estamos a aproximar-nos de Santiago parece que ninguém quer parar. Ainda não saímos da aldeia e torna a chover bem.
Faltam ainda meia dúzia de quilómetros que fazemos debaixo de chuva e só depois de chegarmos ao albergue abranda um pouco mas não pára. O albergue faz parte do complexo urbanístico do Monte do Gozo onde se realizam eventos culturais, desportivos, sociais, tradicionais e mais…
Hoje estava com a ideia de fazer poucos quilómetros, perto de dezoito, e afinal fiz trinta e dois. Ao menos já estou às portas de Santiago.






Dia 32 – 17/10/04 – Domingo – SANTIAGO DE COMPOSTELA
Ponho-me a pé por volta das oito horas e quando vou para tomar o pequeno-almoço já a Idair segue com um casal de brasileiros. Boa viagem. Eu tenho tempo, só faltam cinco quilómetros até Santiago. Até porque está a ameaçar chuva e quero esperar um pouco para ver no que dá. Afinal começa a morrinhar quando estou de saída.
Ao chegar à cidade um espanhol que não via há muitos dias apanha-me e vamos os dois juntos na conversa. Por causa disso não reparamos nalgum sinal e perdemo-nos.
Temos de perguntar pela catedral e lá nos vão dando indicações. A chuva pára quando já estamos mesmo a chegar. Pelas ruas há muitas grades a delimitar um percurso de uma prova de atletismo, com centenas de participantes. Torna-se complicado andar e ainda mais atravessar algumas ruas.
Queremos cumprir a tradição, só que há uma fila enorme de pessoas e temos de esperar quase meia hora. Entramos pela porta santa e, passando por trás do altar, vamos dar um abraço a S. Tiago. Como está a decorrer uma missa deu para ver o célebre “botafumeiro” a balançar. Visitamos o túmulo do apóstolo e saímos. Outra vez chuva.
Como é domingo e também houve uma prova de atletismo as pessoas à volta da catedral são mais que muitas. Mesmo assim lá vou encontrando alguns peregrinos que conheci ao longo deste mês e de quem me despeço. Todos estão contentes por terem atingido o seu objectivo.
A chuva pára e torna outra vez a cair. Eu até à última semana ainda estava com ideia de continuar até Finisterra, mas com a chuva que tem caído já não tenho vontade. Ao meio-dia desço até à estação para saber a que horas tenho comboio para casa. Só às quatro e meia. Torno a subir até ao centro e vou almoçar.
Vou visitar a catedral e ao fundo, no Pórtico da Glória, vejo os peregrinos a cumprir mais um ritual, que eu me dispenso, que é encostar a cabeça a uma coluna. Saio e vou caminhando para a estação ainda que seja cedo.
Encontro a Brenda e o John e mais uma vez despeço-me deles. Ainda vão uns dias até Paris antes de regressarem ao Canadá.




No gabinete de acolhimento aos peregrinos apresentamos a credencial para nos passarem a “compostela”. A credencial ficou com um último carimbo com a data da chegada, depois de tantos ao longo do caminho.


Na estação ainda falo um pouco com uma coreana que me diz que vive em Braga e que já tinha feito uma parte do caminho de Santiago.
Durante a viagem de regresso tenho tempo para pensar um pouco no que foram estes 32 dias para percorrer 780 quilómetros sem problemas físicos. Esta caminhada foi fantástica.
Conheci muita gente com quem ia trocando impressões sobre a peregrinação e o caminho. Havia tempo para falar da vida, do trabalho, da política, da religião, de tudo, enfim...Foram muitos dias de convívio com pessoas espectaculares e quando cheguei até tive uma certa pena de ter de abandonar toda esta gente. Gostei mesmo da experiência.
Fico a pensar que tenho de repetir um dia. Não sei quando, mas gostaria...
Talvez no próximo Jacobeu…

António Queirós R. Cruz
Trofa, 01/06/2005

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