segunda-feira, julho 21, 2008

Arica, mesmo no norte do Chile

Antes de sair de S. Pedro de Atacama achei que devia ir visitar o salar de Atacama, pois li que era o maior do Chile.
O único ponto de interesse é uma pequena lagoa, Chaxa de seu nome, que fica no meio do salar. Este é bem diferente do de Uyuni pois não é liso como esse. Parecia-me um campo depois de lavrado. A superfície era irregular e escura.
A explicação que me deram é que a água do degelo infiltra-se nas montanhas em redor e depois sobe à superfície trazendo os sais dissolvidos que se depositam de forma irregular. No salar de Uyuni a água é levada por pequenos rios, quando chove, e por isso a superfície é lisa.

A Carola foi comigo e no regresso ao passar em Toconao fomos ver a Quebrada de Jere. Um pequeno vale com um riozinho que conseguia manter alguma verdura no meio deste deserto.
O pior foi a seguir quando voltámos à estrada principal. A roda de trás da moto da Carola estava a perder ar e tivemos de fazer uma reparação ali na berma da estrada. O remendo de um furo anterior tinha descolado e não dava para colar outra vez. Por sorte, ou talvez não, eu tinha levado o meu material e emprestei-lhe a minha câmara de ar suplente. Ao montar o pneu ela traçou a câmara e não se conseguia encher. Foi preciso voltar a desmontar o pneu e remendar o corte. Desta vez já deu para encher mas o pneu não ficou bem assente e tivemos de vir devagar pois a roda ia a abanar.
Fez-nos lembrar a travessia na semana anterior em que ela também tinha um problema com a roda traseira que todos os dias de manhã era preciso encher pois perdia ar lentamente. A cerca de 4.200 metros de altitude ao fim de meia dúzia de bombadas era preciso parar para recuperar o fôlego.
Já agora aproveito para dizer que nessa semana por algumas vezes tive de sair da moto quando ela se enterrava na areia e puxá-la, com a ajuda do motor, para desatascar. Quando chegava a um ponto mais firme sentava-me outra vez na moto e ficava um pedaço a recuperar do esforço. Até parecia que tinha corrido sei lá quantos quilómetros…
À noite fomos jantar para uma espécie de despedida. O Jurgen e a Petra já tinham seguido e nós iríamos partir no dia seguinte, cada um para seu lado.
Na estrada para Calama fiz um desvio para o Vale de La Luna. Tinha lido que era um vale com formações rochosas únicas e que merecia uma visita. Não achei nada especial. Tinha alguns pontos interessantes mas penso que já passei noutros vales mais espectaculares.
Será que já vi tanta coisa que já não consigo saborear pequenas diferenças nas paisagens?
Por azar numa das vezes que parei para tirar umas fotografias o saco do depósito ficou aberto e uma das máquinas ficou ao sol. Mais à frente tentei fazer um filme do vale e quando fui ver o resultado fiquei desconsolado. A objectiva tinha um problema e fazia uma barra negra. Fechei e abri várias vezes, mas nada. Ainda não encontrei onde reparar. Espero que quando chegue a Sucre aí encontre, senão…
Continuei subindo mais uma vez até aos 3.400 metros para atravessar a Cordilheira de Domeyko. Depois a descida pelo meio do deserto de Atacama até cerca dos 2.300 metros em Calama. Sempre longas rectas no meio de uma secura que fazia impressão.
Comprei uma câmara de ar para a roda de trás e encontrei um lugar onde me lavaram o filtro de ar.
A uns vinte quilómetros de Calama fica Chuquicamata, cidade mineira. Existe aí uma das maiores minas, se não a maior, a céu aberto do mundo. Ainda pensei em ir visitá-la mas tinha de ir numa excursão e só da parte de tarde, às três. Resolvi continuar o caminho, ainda nem era meio dia.
Mais umas dezenas de quilómetros pelo meio do deserto em direcção à costa.
Só muito perto de Tocopilla, uns dez quilómetros, a estrada começa a descer dos 1.000 metros até ao nível do mar.
A cidade de Tocopilla pareceu-me muito escura e sem interesse. É um porto de mar para carregar o minério de cobre. Mais tarde soube que nos últimos anos sofreu dois terramotos que quase a destruíram.
A estrada ao longo da costa é interessante mas foi pena a neblina que cobria a zona marítima. O deserto vem até ao mar. Não há vegetação nenhuma, apenas areia e rochas. A faixa costeira por vai a estrada fica encravada entre o planalto do deserto e o mar. Nalguns pontos terá duzentos ou trezentos metros de largura mas muitas vezes foi preciso escavar a encosta para a estrada passar.
Em Iquique estava a ver que não conseguia arranjar sítio para dormir. Os primeiros 4 ou 5 hotéis não tinham lugar. Num deles perguntei porquê e disseram-me que havia uma festa perto da cidade (a mais de setenta quilómetros) e por isso estava tudo ocupado.
Afinal sempre consegui encontrar um lugar. Um pouco caro mas teve de ser. Neste dia tinha feito muitos quilómetros, para a média que costumo fazer, e só queria era um canto para dormir. Até a moto, mais uma vez, ficou dentro do hotel.

Andei pela cidade e fui ver um centro comercial onde me disseram que havia muita coisa e onde os preços eram bons. Afinal os preços não me pareceram muito interessantes pelo que conheço. Apenas os televisores LCD HD de 40 a 46 polegadas me pareceram baratos, entre 600 a 1.000 euros. Também vi um leitor, não reparei se gravador, Blue Ray por cerca de 500 euros. Muitas lojas com roupa e artigos com interesse mas muitas parecidas com as dos chineses, com bugigangas que me pareciam sem qualidade.
Desci à beira-mar e andei um pouco ao longo da costa. O mar é sempre bonito de se ver.
Por aqui já não faz frio.


Fui a La Tirana assistir aos festejos em honra da “Virgen del Carmen de La Tirana”. Disseram-me que era uma das maiores festas religiosas no Chile. Vem gente de todo o lado, até do Peru e Bolívia.
Esta festa tem uma grande dose de paganismo misturada com a parte cristã. Há muitos grupos com roupas mais próprias para desfiles de carnaval que para dançar em honra da virgem.



Também por aqui se vêem pessoas a cumprir umas penitências...
De tarde havia uma procissão com três andores, cada um levado por dezenas de pessoas. Era um grupo enorme para um andor que talvez quatro ou seis, quando muito oito, pessoas poderiam levar.
Os grupos de dança iam acompanhando os andores mas andando para trás de modo a não se voltarem de costas para o andor. Apenas iam cantando as suas canções.
Decidi regressar antes de a procissão acabar para evitar a confusão que seria no final. Mas mesmo assim os autocarros já iam saindo cheios.
Conheci um ciclista brasileiro, Eddy Nilson, que me disse que andava a percorrer a América do Sul. Pensava ir pelo menos até à América Central e percorrer também algumas das ilhas das Caraíbas. Depois veria.
Fui buscar o casaco para arrancar e vi-o a falar com um sujeito. O outro rapaz chama-se Cristian e trabalha na Rádio Dinâmica FM, na Calle Zegres perto do Hotel Cano. Tem uma Suzuki Bandit e disse que se alguém precisasse de ajuda para o contactar que ele tentaria ajudar. Sempre é um ponto de apoio.
Saí, depois de abastecer, em direcção à montanha. A cidade de Iquique fica num espaço ao nível do mar e para seguir é preciso subir outra vez ao planalto do deserto. Em poucos quilómetros volta-se aos mil metros de altitude.
Antes de chegar à Ruta 5 viam-se umas construções antigas e ferrugentas que foram espaços para recolha de salitre. Agora apenas servem como atracção turística. Não parei, pois não sou muito entusiasta de museus.
Em Huara parei para beber alguma coisa fresca e em conversa com um rapaz este disse-me que devia ir ver o “Gigante de Atacama”, o maior “geoglifo” do mundo.
Fiz um desvio e fui ver o tal gigante, uma figura com forma humana formada com pedras numa encosta de um monte. Será o maior do mundo? Não sei.
Voltei ao meu caminho e continuei para Pisagua. Até chegar ao desvio ia vendo se havia alguma bomba de gasolina mas nada. No meio deste deserto as povoações são sempre pequenas e muito distantes umas das outras.
Quando em Janeiro regressava de Ushuaia e parei em Rio Grande a dona do hostal Hotel Argentino, a Graciela, disse que tinha estado em Pisagua há muitos anos e tinha gostado da aldeia. Pensei que seria um ponto a visitar.
Ao chegar à costa, Pisagua apareceu-me ali num recanto junto ao mar. Mais uma descida até ao nível do mar.
A povoação é pequena e muito velha. Há muitas casas abandonadas e a desfazerem-se. O teatro também está a começar a cair aos bocados. Fica mesmo em cima do mar e o guardador da chave disse que o mar muitas vezes entra lá dentro.
Depois de almoçar fui andar um pouco pela costa até um ponto onde me disseram que havia lobos marinhos. Ao fim de uma boa caminhada apareceu-me uma zona de rochas onde lá estavam os lobos marinhos. Tentei aproximar-me um pouco mas um deles acordou estremunhado e assustou-se e começou a fugir. Foram todos para a água.
No regresso, ao passar no centro, comprei umas cervejas e fui para o hostal. Bebi uma delas com o Don Rafael, dono do hostal. Estivemos um pedaço na conversa. Este é um dos lugares onde é agradável estar.
À noite, depois de jantar, também estive na conversa com a cozinheira, Martita como lhe chamam os amigos, e dona da casa onde fui jantar. Senhora com grandes conhecimentos da história do Chile contou-me algumas histórias sobre Pisagua. Pequeno porto que teve os seus tempos áureos no final do século XIX e até meados do século XX com as exportações de salitre e guano. Mais tarde, depois do golpe militar de 11 de Setembro de 1973, foi o lugar de um campo de concentração para os presos políticos. Muitos deles foram aqui fuzilados e enterrados em vala comum. Só passados muitos anos, em 1990, foi possível descobrir essa vala onde nem todos os corpos estavam, alguns nunca mais apareceram.
No dia seguinte fui andar um pouco em direcção a Pisagua Viejo e visitar o cemitério. Ainda não tinha visto nada parecido. Fica numa encosta sobranceira ao mar e as campas têm vedações de madeira, em ripas. Existe lá um memorial em honra dos mortos pelo regime militar. Também lá está a vala comum onde os corpos foram encontrados.
Pisagua já tinha sido um ponto importante na guerra do Pacífico, século XIX, e foi onde desembarcaram as tropas que conquistaram esta zona para o Chile privando a Bolívia de uma ligação com o mar.
Ao final da tarde chegou um motociclista chileno, o Mário Vargas, com uma Yamaha Teneré. Estivemos um pouco na conversa e fomos jantar juntos.
A Marta apresentou uns mariscos com batatas cozidas que até estavam bons. Não sou apreciador de marisco mas nesta terra de pescadores ou há peixe ou marisco.
Tive de voltar pelo mesmo caminho até à estrada principal lá no planalto. Agora era a subir.
Como tinha visto que não havia bombas de gasolina, consegui saber onde comprar alguma gasolina que me permitisse chegar a Arica. Desde Iquique, só no cruzamento para essa cidade em Pozo Almonte havia gasolina e até Arica não há nenhum posto. São muitos quilómetros sem ter onde abastecer.
Nesta jornada em duas ocasiões em que a estrada desce por um vale até perto da costa e depois volta a subir por outro vale até ao planalto se vê nesses vales um pouco de verdura devido aos rios que pouco maiores são que um ribeiro seco. De resto sempre e sempre tudo muito seco.
Em Arica encontrei um hostal que não tem garagem mas deu para meter a moto num pátio interior em frente do balcão da recepção.
Depois de um duche fui dar uma pequena volta pela cidade.

De repente vejo um camiao verde a passar. Eram o Jurgen e a Petra. Estão num parque de campismo junto a uma praia na saída mais a norte da cidade.
“Die welt ist klein” .
Agora penso ficar mais uns dias por aqui e depois voltar à Bolívia.
Arica, S 18º 28,812’ W 70º 18,862’

5 comentários:

Anónimo disse...

GRANDE QUEIRÓS !
NÃO HÁ PALAVRAS PARA DESCREVER AS TUAS NARRATIVAS DESTA GRANDE AVENTURA. SÓ POSSO DIZER, CONTINUA AMIGO ! SEMPRE EM FRENTE ! SEMPRE A ROLAR !
GRANDE ABRAÇO DOS TEUS AMIGOS DO MCP VALENTE E ARMINDA

Anónimo disse...

Caro António, lá continuas tu a tua viagem à descoberta das Américas.
Cada vez estás mais solto na prosa e mais internacional na dimensão.
Espero que continues a encontrar o vento a soprar-te de feição.
Realmente depois de quase um ano na estrada é provável que a tua capacidade de assombro perante as paisagens novas esteja diminuída.
É natural que depois de teres visto tanto comeces a ser mais selectivo na apreciação. Quem me dera poder dizer o mesmo...
Um abraço, amigo, continua a fazer-nos sonhar.
Mustafá

Anónimo disse...

Olá Queirós,
Pegando nas tuas palavras e compreendendo que o fervilhar de cenários ao longo de tantos meses te possa tornar insensível, quando será que paras e agarras um trabalho temporário conforme já o tinhas imaginado?
Seja qual for a tua vontade o importante é te sentires bem ao acordar de manhã com motivação para enfrentar o dia que te aguarda.
Abraço
Carlos Almeida

Anónimo disse...

Então António, pelo relato e pelas imagens fantásticas que nos apresentas, vejo que a viajem continua a correr sobre rodas.
Um beijo da Inês

fernando_vilarinho disse...

Queirós, é com crescente agrado que leio as tuas crónicas, e observo a afinidade que tenho pela América Latina a ampliar-se. Tens nos mostrado o belo rosto da América Latina quando nos trilhos levantas essa poeira que a cobre parcialmente.

Bom regresso à Bolivia!

Abraço,
fernando